Discute-se muito o direito, mas pouco os deveres de quem compra armas

Por: Fabrício Sabaini

Fonte: A Gazeta

Data: 29/10/19

Posse e porte de armas no Estado: por dia, pelo menos quatro pessoas são flagradas . Crédito: Pixabay

Entramos na Semana Mundial do Desarmamento da ONU (Organização das Nações Unidas) no último dia 24. Na atualidade, um tema de difícil abordagem técnica, pois a tendência é que os debatedores pretendam a concordância plena com o que acreditam e qualquer detalhe a ser discutido leve o questionador a ser tachado como antagonista ao que a pessoa crê como verdade absoluta.

Como efeito deletério, o debate se perde em questões ideológicas em detrimento da discussão de políticas públicas eficazes no combate às armas ilegais no Brasil, que nos trazem números de letalidade de guerra, praticados em mais de 70% dos casos com armas. Discute-se muito o direito, mas pouco os deveres e o controle das armas vendidas.

De tal forma, atrevemo-nos a trazer à tona proposições que podem vir a ser eficazes para minorar os efeitos das armas ilegais. E não se trata de esgotar o assunto, nem que todas as proposições são fechadas à discussão. Mas é necessário que o debate seja amplo.

Em primeiro lugar, entendemos que as polícias não concentram o poder investigativo devido no propósito de retirar armas ilegais de circulação, nem de interromper fluxos de acesso a novas armas. E não se trata de não ter tal estrutura em seus organogramas, mas de prover meios e recursos (inclusive humanos) suficientes para que a missão seja cumprida a contento.

No Espírito Santo, nos anos de 2016 a 2018, tivemos 1.221 perfurações por calibre .38 (inerente a revólver), enquanto que 498 perfurações de calibre .380 (inerente a pistola), o que ilustra a importância de não combater apenas as armas longas e de calibres mais potentes, mas também de retirar de circulação a maior quantidade possível de armas, de todos os calibres. Consideramos em hipótese que as armas de calibres menos potentes, por serem mais baratas, são as utilizadas nos crimes de menor complexidade, porém que causam muita letalidade à sociedade.

No viés preventivo, de diminuição de fluxo de armas para a criminalidade, estudos com validade estatística apontam que muitas das armas apreendidas têm como origem as armas compradas legalmente décadas atrás. Houve uma “corrida armamentista” na década de 80, seguida de um descontrole estatal sobre as armas compradas nesse período, que no transcorrer dos anos ocasionou um desvio de um percentual das armas legais para ilegalidade.

É o que vislumbramos ao verificar que, entre 2010 e 2017, foram 15.036 revólveres em circulação, em confrontação 4.038 pistolas, em sua grande maioria com números de registros intactos. Não se afirma que todas as armas adquiridas de maneira legal acabarão sendo desviadas, mas, num cenário de descontrole estatal pós-venda, certamente o percentual será maior que num cenário com controle efetivo. E, no cenário de aumento de armas legais sem o controle posterior à venda, repetir o ciclo das armas da década de 80.

Nota-se que a sociedade aceita de maneira passiva pagar impostos ao Estado de imóveis e veículos de forma anual, mas encontra resistência de ao menos prestar contas a cada ano sobre a posse de uma arma de fogo. Seria salutar uma declaração anual de posse da arma (não confundir com vencimento do direito), sob penalidade legal.

Seria ainda positivo o treinamento periódico obrigatório de manuseio e disparos com a arma de fogo adquirida, em estabelecimentos autorizados e fiscalizados pela Polícia Federal, com comprovação biométrica, filmagem do treinamento e coleta das munições utilizadas (com protocolos de balística estabelecidos e alimentados pela empresa junto ao sistema de controle da Polícia Federal).

O Espírito Santo já tem experiência exitosa no estabelecimento da bonificação de armas ilegais apreendidas, com correlação com a diminuição dos crimes letais nos períodos em que estava válido, sendo o período onde cessou o efeito sobre as apreensões foi de queda. Se não podemos afirmar como única causa de diminuição nas mortes, temos certamente um bom parâmetro de avaliação da efetividade nas investigações.

Assim, nas proposições legislativas no Congresso, vemos iniciativas louváveis em discutir algo além do acesso às armas legais. A proposta legislativa relatada pelo senador Alessandro Vieira traz boas previsões sobre controle maior nas armas e munições, inclusive com instrumentos de rastreamento das armas.

O deputado federal Sanderson (PSL-RS) deu entrada em proposição sobre nacionalização da bonificação por arma de fogo ilegal apreendida, experiência exitosa em terras capixabas. Mas o foco sobre o controle de armas ilegais e, principalmente, sua retirada de circulação, ainda é muito incipiente, sendo necessária uma ampliação das políticas públicas para alcançar a efetividade contra os crimes letais praticados por armas ilegais.

Dessume-se que o Brasil e o Espírito Santo têm por dever eleger o combate às armas ilegais como primordial para diminuição da criminalidade letal. Inobstante o efeito devastador sobre a segurança e saúde públicas, o tráfico de drogas é realidade em todos os lugares do mundo. O que não é aceitável é a quantidade de armas ilegais disponíveis, com os índices de letalidade de guerra apresentados pelo Brasil. De tal forma, o combate aos crimes cometidos com armas deve ter a mesma condição repressiva que a do tráfico de drogas. Seja nas fronteiras ou no combate às armas ilegais dentro do Estado.
 
O autor é policial federal e mestrando em Segurança Pública

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