Colocar a Polícia Federal para investigar as milícias é uma boa ideia?

Proposta do deputado Marcelo Freixo, de enviar para a Justiça Federal as investigações contra milicianos, é vista como positiva, mas de complexa execução

Fonte: Clara Cerioni, João Pedro Caleiro

Data: 10/10/19

São Paulo — Há mais de uma década atuando no combate às milícias no estado do Rio de Janeiro, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) pautou no Grupo de Trabalho do pacote anticrime a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que federaliza as investigações desses grupos criminosos.

A proposta já constava no relatório do deputado Capitão Augusto (PL-SP), a partir de sugestão apresentada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e um grupo de juristas.

Inicialmente, a ideia era incorporar a matéria ao Código Penal. Juridicamente, no entanto, a mudança precisa ser feita na Constituição Federal, que estipula os tipos de crime que devem ser investigados pela Polícia Federal e julgados pela Justiça Federal.

A proposta pode ajudar a resolver um dos principais obstáculos de investigação contra essas organizações: atualmente, parte dos policiais da ativa que seriam os responsáveis por desmantelar os esquemas estão envolvidos nas milícias ou são ameaçados por elas.

A iniciativa já tem a adesão dos sete deputados que integram o grupo, além do apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que também é carioca.

Para ser apresentada como PEC, ela precisa ser assinada por 171 deputados, processo que está em andamento. Freixo não crê que isso será um desafio, notando que houve unanimidade sobre o tema dentro do grupo de trabalho entre deputados de partidos tão diferentes como o PSOL e o PL.

Histórico
As milícias, que têm como embrião os esquadrões da morte formados no regime militar, se consolidaram nos anos 90 como máfias paramilitares em contraponto às organizações de tráfico de drogas. Depois, nos anos 2000, esses grupos passaram a conquistar os territórios comandados por facções e a deter o monopólio do tráfico em algumas regiões periféricas.

Nos últimos anos, os membros das organizações alçaram cargos políticos, que garantem a manutenção dos recursos financeiros. Somado a isso, também há denúncias de que o grupo cobra taxas de moradores para fornecer acesso à água, energia e internet.

Faz parte do financiamento das milícias a aquisição de terrenos e imóveis irregulares, com o objetivo de lucrar com aluguel.

Em abril, prédios em Muzema, na região Oeste do Rio, desabaram e deixaram ao menos cinco mortos. O chefe da milícia na região, segundo investigações do Ministério Público, era um major da Polícia Militar. 

“A situação piorou muito. É um grupo criminoso que além da questão territorial, tem atividades econômicas e eleitorais, o que o aproxima da máfia”, diz Freixo.

O entrelaçamento entre forças estatais e criminosas torna cada vez mais complexo o combate a esse tipo de grupo, que se espalha pelo país — a maior concentração está no Rio de Janeiro, mas há registros de operações do Ministério Público para desarticular milícias em, ao menos, doze estados brasileiros.

É por mirar na lógica de expansão e de capilarização nas estruturas do Estado que a proposta de Freixo acerta em sugerir a federalização das investigações, segundo o sociólogo José Cláudio Souza Alves. Autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”, o pesquisador estuda há 26 anos a dinâmica das milícias e é considerado um dos principais especialistas sobre o tema.

“É uma possibilidade bem-vinda, já que parte significativa da atual estrutura [de investigação], a meu ver, está comprometida e com respaldo político. As declarações publicas de apoio deixam os grupos muito à vontade, tanto que mataram a Marielle Franco há um ano e meio e até hoje as investigações do mandante do crime estão obstruídas”, diz.

O pesquisador, no entanto, sinaliza para o desafio prático, que é a necessidade de mais recursos. Na história recente da PF a especialização principal foi para combater o tráfico de drogas e as facções criminosas, mas não milícias.

“A PF teria que começar a montar uma estrutura de informação, de conhecimentos específicos e estudos gerais de vários âmbitos: do político ao econômico”, diz. “Os investigadores precisam estar prontos para se deparar com uma estrutura de poder de força, que é corruptora e que vai afetar diretamente a estrutura da PF”, completa.

A preocupação do sociólogo é compartilhada também pelo presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais, Luis Boudens. Em sua avaliação, o debate é válido e necessário, mas impraticável atualmente, contando com todas as funções já atribuídas à Polícia Federal.

“Apesar de existir milícia em outras regiões, o caso é focado quase inteiramente no Rio de Janeiro. Sendo assim, não vejo necessidade de colocar para a PF a responsabilidade de assumir investigações sobre outras corporações policiais, salvo investigações que já adentram a nossa competência”, diz ele.

“Todo esse processo (nova atribuição por tipologia criminal) exige treinamento, estudos doutrinários profundos, de inteligência e operacionais, além do custo e do tempo para se implementar uma estrutura hierarquizada desde o Órgão Central até todas as unidades da PF”, completa.

Nesse caso, sua sugestão é utilizar de um mecanismo já autorizado pela legislação, que é a faculdade dada ao Ministério da Justiça de federalizar investigações, principalmente as que tenham repercussão interestadual e exijam repressão uniforme.

No caso do Rio de Janeiro, Moro pode autorizar a abertura de investigação federal e designar a criação de uma coordenação que colocará a cargo da PF as investigações de milícias: “Para dar uma resposta ágil e efetiva, esse é o melhor caminho”, diz Boudens.

Freixo destaca que a expansão das atribuições seria acompanhada do suporte necessário, e que isso também é uma questão de vontade política e decisão de governo. Ele diz que nada impede que a PF trabalhe em parceria com as polícias civis e com outros órgãos de inteligência do Estado.

Segundo um ex-ministro da Justiça, que preferiu não ser identificado, a proposta de Freixo é positiva, mas é improvável que consiga votos suficientes no Congresso, onde há forte representação de policiais.

Para virar lei, uma emenda constitucional precisa ser aprovada em dois turnos por uma maioria de dois terços dos congressistas, o que significa 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores.

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